top of page

A carta da basílica de São Pedro: A desconstrução de um discurso sobre o céu

Patrimônio arquitetônico e artístico da humanidade, a basílica de São Pedro foi construída sobre o local onde estariam os restos mortais do patriarca e fundador da igreja católica, Pedro. O papa Júlio II, ele próprio versado no conhecimento da astrologia, não intencionava apenas construir um basílica, mas deixar para os séculos vindouros um testemunho do poder e da glória espiritual e por que não dizer política da igreja e de seu papado.

Para tal divisou uma carta eletiva, ou seja, a escolha das configurações do céu para momento do início da construção; com o fim de estabelecer a fundação ritual desta, procurou junto com seus astrólogos uma data que tivesse ressonância com a data de fundação de Roma (próxima a 21 de abril) o mapa natal de Cristo (estabelecido para a meia noite de 25 de dezembro, com o Ascendente no signo tropical de Libra) a carta do Thema Mundi (Asc em câncer, o mesmo da Basílica) e sua própria carta natal, com signos tropicais nos ângulos, tudo isso visando a colocar a basílica como um símbolo do centro do mundo e da cristandade.

Acima, uma reprodução medieval do Thema Mundi, representação simbólica da origem do mundo: O Ascendente, situado a 15 de Câncer, com a Lua em seu domicílio e na sequência os sete planetas, cada qual marcando seu domicílio, até alcançar Saturno, na casa7.

Julius II via a si mesmo como um Papa-monarca e tencionou engrandecer o poderio monárquico do papado; a própria escolha de seu nome como papa faz alusão a Júlio Cesar, como se ele fosse predestinado a restaurar o Império Romano.

A referência ao mapa por astrólogos da época é curiosa, posto que ignora propositalmente os diversos traços desfavoráveis presentes na carta: "as localizações na carta do Sol, Vênus e Mercúrio indicam benevolência, enquanto as de Saturno e Marte sugerem poder e longevidade, a localização de Júpiter foi propícia igualmente, prometendo riqueza. Julius e seus arquitetos acreditaram que a concordância dos céus e a radiação emanando do Cosmos proporcionaram proteção para o edifício, e por sua vez, este continuaria a irradiar esses poderes sobre as pessoas associadas a ele por séculos”.

A impressão inicial que tive da carta, com a configuração de Marte-Saturno envolvida em uma recepção adversa com o Sol (o pontífice-rei) me sugeriu ser essa carta um prenúncio da guerra religiosa e da contestação da autoridade papal por Lutero, que ocorreu a partir de 1517; Fazendo pesquisa histórica, realmente há fontes que corroboram essa visão. Lucas Gauricus, astrólogo da renascença(e fonte imparcial,posto que era católico e elogiava o papa) comenta que o aspecto insalubre dos céus apontava os problemas que a construção teria:ficou décadas parada(Sol/Saturno).

O "céu mostrado aqui, tinha pouco a recomendá-lo" diz uma historiadora, Mary Quinlan-Macgrath (1) e ela aponta posteriormente a relação entre a construção e as teses de Lutero, algumas das quais fazem referência direta a basílica como motivação para a obtenção questionável de dinheiro pela igreja (vendia o perdão dos pecados, explorando os pobres-Saturno na 2)

A narrativa que o céu conta é de cobiça (Saturno debilitado na 2) e corrupção moral (Júpiter corrompido, em estado de debilidade essencial e acidental, senhor da 9), nada parecida com o discurso dos astrólogos subservientes ao papa citado acima; Inclusive, esse papa era líder de exércitos, sendo conhecido como "o papa guerreiro” (Marte/Saturno) e tinha amante, Lucrezia Normanni, e uma filha, Felice Della Rovere, que se tornou nobre posteriormente.

O discurso da época nos apresenta um céu ideal, um rei benevolente (Venus angular na casa 10); porém podemos desconstruir a narrativa oficial interpretando a narrativa que o céu real nos conta: Venus está em seu signo de contrariedade, Áries, regido por Marte; Marte, por sua vez, está junto com Saturno em seu signo de contrariedade (Leão), ambos fazendo quadratura ao Sol. Planetas em estado cósmico desfavorável mostram facetas não usuais,na melhor das hipóteses, ou o desvio de padrões aceitáveis, na pior.

Na data em questão o rei estava a pouco de iniciar uma guerra. Venus envolvida com Saturno na casa 2,ambos em mau estado celeste, mostra a ansiedade e temor de não conseguir fundos, o que leva a uma atitude de cobiça.Como diz um antigo aforismo:''Os planetas benéficos são generosos e confiáveis;os maléficos,cobiçosos e não confiáveis" .

O Sol faz trino com Júpiter, regente da casa da religião, casa 9, este em signo de contrariedade, retrógrado e em casa cadente: O papa observa o que sucede na igreja (diz-se que planetas em aspecto observam e escutam um ao outro), mas faz vista grossa, necessita de dinheiro a todo custo (Sol recebe Saturno em seu domicílio). O aspecto entre Sol e Saturno é adverso,o que condiz com os obstáculos à construção que perduraram por décadas.

Embora possa ser sujeito à discussão tomar o Sol aqui como representante do papa- é uma carta eletiva para a construção de um edifício - creio que os planetas podem mostrar fatores extrínsecos á Basílica em si. Afinal, alguém patrocina essa construção, e quem é esse alguém? A autoridade máxima, o Pontífice-rei, o Sol, o papa. Sol em Touro é a basílica, mas igualmente representa Pedro, o patriarca, que era conhecido como a pedra angular da igreja: Pedro vem do latim, Petrus, pedra e como o papa é o sucessor de Pedro; ele também é considerado pedra angular da igreja-simbolicamente o papa é tal como Cristo e Pedro, quem sustenta o edifício daigreja.

Ao mencionarem que a posição de Vênus irradiaria benevolência, por certo e tiveram em mente o duplo sentido que era atribuído às igrejas, material e espiritual, indo além da construção propriamente dita. E Venus regendo o Sol alude ainda mais à benevolência tanto da instituição como do Papa. Em se tratando do símbolo da cristandade, local de peregrinação de fiéis por ser depositário dos restos mortais de São Pedro, inicialmente houve temor pelo fato de que se derrubaria o que restou da estrutura da construção original, a primeira basílica erguida no local mais de um milênio antes.

Lucas Gauricus comentou a propósito do céu escolhido pelos astrólogos, que se tratava de um céu "insalubre" ou nocivo. Então, por que teriam escolhido um céu desta ordem? Até mesmo a Lua, que parece bem situada na casa 9, a um olhar mais atento, mostra-se vazia em seu curso, não fará nenhum aspecto aplicativo, o que representa um verdadeiro desprezo pelas regras mais importantes da astrologia eletiva.

A resposta à indagação acima é que pode ter se tratado simplesmente de uma imposição do papa, que queria fazer a data coincidir com a proximidade da fundação de Roma, já que ele próprio se via como um restaurador do Império romano. A escolha do dia 18 também conectaria o evento com a data da fundação da primeira basílica,fato que seria considerado um respeito religioso pela sua história e sentido.

Outra hipótese, que eu teço, é de ordem ideológica: o papa está comprometido com um discurso que diz ser o céu propício, já que sua vontade está em consonância com o céu; se sua vontade é construir sem demora a basílica, e é uma vontade boa, logo, o céu só pode ser bom (é uma inversão do princípio hermético). É também o discurso que usa a astrologia para legitimar a igreja como representante da vontade celeste:a carta mostraria uma igreja benevolente,a hora que Gauricus menciona para a carta, 10 horas, é a hora de Vênus,planeta benéfico que além de reger o Sol,rege a Lua e a casa 9 por exaltação.

Ora, se eu sou benevolente e o céu é benéfico e eu me subordino a ele, aqueles que se subordinam a mim também estarão alinhados com o céu, com a vontade de Deus. Quem me desafia, desafia aos céus e só pode ser motivado pelo oposto da benevolência.

O céu real, as configurações insalubres que na verdade estão presentes na carta e mostram um céu ''ruim" representam a narrativa real do céu, que nos apresenta uma igreja corrupta...

, O céu foi desde a antiguidade mais remota um guia para a geopolítica, os sacerdotes assírio-babilônicos olhavam-no para dele derivar presságios sobre o rei, a guerra, as colheitas. Igualmente,a psicologia teve origem na observação do céu - Ptolomeu fala dos planetas governantes da alma ,Lua e Mercúrio e descreve uma teoria sobre a psique que deriva da aplicação da filosofia aristotélica aos elementos da investigação astrológica:

Sobre as qualidades da mente, todas as que são racionais e intelectuais são ponderadas a partir da situação de Mercúrio; todas as demais, no que concerne às faculdades meramente sensitivas, e que independem da razão, são consideradas a partir do luminar que possui uma constituição menos sutil e mais corpórea, a dizer, a Lua e as estrelas com as quais ela se encontra configurada, seja por aplicação ou separação”.

Tetrabiblos, Livro III, CAP.XVIII

Mercúrio é análogo à instância racional da alma, discutida por Platão em sua República, enquanto que a Lua pode ser associada às instâncias irracionais da psique. Assim divide a psique Platão :

—A parte com a qual o homem aprende – amiga do estudo e da sabedoria.

—A parte pela qual prova emoções, irascível – amiga da vitória e da honra.

—A parte concupiscível, que inclina às satisfações dos desejos e ao amor pelo lucro.

Fazendo um percurso teórico inverso, ou seja, carregando de volta esta teoria astrológica sobre a alma até Aristóteles e dele até Platão, seu mestre, podemos chegar às seguintes reflexões:

A) Platão escreve que a alma é feita de três instâncias que eventualmente estão em conflito e levam o indivíduo á desarmonia.

B) Na República,é descrita uma analogia entre a alma e o estado: da mesma forma como no indivíduo uma parte sua(instintiva, irracional ou ligada aos apetites)pode dominar a parte racional da alma,levando a uma tirania de uma parte sobre outra e ao descontrole pessoal, pode haver nas sociedades a tirania ou oligarquia,com uma minoria dominando os demais e instaurando a doença social

C) A partir desta premissa, da mesma forma como há uma analogia entre alma individual e estado, poderíamos aplicar os princípios mostrados por Ptolomeu, a propósito das doenças da alma, para fazer um diagnóstico sócio-astrológico, fazendo um paralelo entre a astrologia natal (centrada no indivíduo) e a social (centrada no coletivo).

Se este raciocínio está correto, ao nos debruçarmos sobre mapas de um período social ou estado que enfrenta turbulência, corrupção e abusos de uma minoria sobre um grupo maior, encontraremos os fatores descritos por Ptolomeu para as doenças individuais da alma presentes nos mapas de cunho social.

As conjunções entre Júpiter e Saturno eram objeto de preocupação entre os astrólogos antigos posto que anunciavam mudanças no status quo político econômico e religioso das nações. Por exemplo, O mapa acima do ingresso solar(entrada do Sol no equinócio da primavera) mostra para a Itália a conjunção entre Júpiter e Saturno em um signo angular do mapa(o que amplifica seu poder), e inspirou a diversos astrólogos da época uma visão apocalíptica ; a imaginaram como o prenúncio do nascimento de um anticristo (2)(Astrology and the seventennth century mind -Ann Geneva/ Manchester University press -1995,p.134)

No caso da carta de ingresso, a Lua situada em signo de Saturno e em oposição à conjunção deste com Marte, ambos em signo de contrariedade e queda, respectivamente, apontam uma situação de corrupção da mente coletiva, levada a cabo pelos detentores do poder em Roma: o regente do M.C. é Marte, que associado a Saturno estão em posição superior e aspecto adverso com Mercúrio e opostos á Lua. De acordo com a teoria de Platão,conforme discutido, há uma analogia entre a alma e o estado,de maneira que as configurações apontadas relacionadas a doença e corrupção das instâncias da alma refletem no plano coletivo o abuso do poder, a corrupção o despotismo, o domínio injusto de uma minoria sobre o povo.O poder em Roma era ao mesmo tempo religioso e político, sendo o papa a um só tempo pontífice e rei de Roma.

Tudo isso prepara o terreno para a ascensão de um novo líder religioso, ascensão representada pela conjunção entre Júpiter e Saturno, como já foi mencionado. A conjunção está na proximidade entre a união entre Marte e Saturno, que ocorreu no mesmo ano, apontando guerra e derramamento de sangue associados ao surgimento do novo "profeta" em questão,Lutero.

Mercúrio, que representa o aspecto racional da psique, rege a casa da religião, a casa 9, e fica impedido de exercer seu poder de manter a temperança o equilíbrio, corrompido que está pelos dois maléficos em estado cósmico desfavorável: Marte rege a casa do poder, o M.C e em desequilíbrio mostra uma exacerbação da busca de glórias e honras pelo mapa, mediante a vitória nas guerras (princípio irascível segundo Platão).

Saturno rege a casa 2 do dinheiro e também a Lua e Venus (situado na casa 2), mostrando o desequilíbrio da parte ligada aos apetites na psique, predispondo à cobiça e amor ao dinheiro, segundo Platão. Portanto,o desequilíbrio instalado o no plano coletivo mediante a ação das autoridades eclesiásticas predispõe a um clima de doença social e reflete a opressão de uma minoria sobre a coletividade.

Se retornarmos ao mapa da refundação da basílica de São Pedro, podemos notar o motivo pelo qual tal carta antecipa a Reforma religiosa iniciada por Lutero:

(1) Primeiro a conjunção entre Júpiter e Saturno, ocorrida em junho de 1504 a 16 e 25 de Câncer, que rege os anos de 1504/1524, período em que eclodiu a reforma, cai no Ascendente do mapa da basílica, principalmente se levarmos em conta que o horário original da carta era 9h21 da manhã. que coloca o Ascendente a 16 graus de Câncer, próximo aos 15 graus do Ascendente do Thema Mundi.

(2) A conjunção entre Marte e Saturno também está dentro desse mapa, conjunção que antecipa a guerra.

(3) O fato da eleição da carta ter sido praticamente imposta pelo Papa, devido aos motivos já elencados, e de ter sido alinhado o mapa, através da proximidade de datas, com a fundação de Roma, potencializando a abrangência do impacto da carta sobre questões coletivas e políticas.

De fato, conforme se sabe a construção da basílica mobilizou a necessidade da obtenção de vultosas somas de dinheiro que deram ensejo ao comércio das indulgências: certos pecados dos fieis estariam perdoados mediante a aquisição desses papéis oferecidos pela igreja em troca de dinheiro. O abuso dessa venda motivou Lutero a escrever suas 95 teses, algumas das quais mencionam diretamente a construção da Basílica.

Tudo isso a meu ver fez com que, ao derrubar o que restou da basílica de São Pedro, no intuito de construir uma nova, o Papa mexeu com a base da cristandade, com o seu símbolo fundador, a pedra angular, fazendo isso sob um céu corrompido, o que acabou por mover simbolicamente forças arquetípicas destrutivas, por assim dizer, ao consagrar a igreja em um ritual religioso sob este céu.

Para confirmar esta hipótese, poderíamos comparar a carta da basílica com a de Lutero:

A casa 12 do Sol, dos inimigos ocultos da igreja, é Áries, onde se encontra o regente do Sol, Vênus, o qual denota ser o inimigo alguém proveniente do interior da igreja, de seu próprio seio.

O regente de Áries é Marte; a casa 7 do Sol, a outra casa dos inimigos encontra-se em Escorpião, cujo regente domiciliar é Marte, situado

com Saturno no signo de Leão. O Sol recebe Marte em seu domicílio,simbolicamente outro fator que reforça o que foi mencionado anteriormente:a igreja acolhe seu inimigo dentro de seu seio.

O mapa de Lutero apresenta o Ascendente em Leão, o signo onde está a conjunção de Marte e Saturno da carta da basílica, que descreve o inimigo da igreja. O Sol rege o Ascendente e encontra-se em Escorpião, a casa sete do Sol no mapa da basílica; Marte está em Escorpião, seu signo de domicílio, junto com Saturno, ambos no signo que designa o inimigo na carta da basílica. Os planetas fazem oposição ao M.C. da carta do reformador, que está em Touro, mostrando a autoridade contra a qual ele se insurgiu, a igreja e o papa: a sincronia é espantosa, trata-se justamente do signo que designa também São Pedro e o papa na carta da basílica!Por fim, a Lua está na natividade em Áries, o outro signo que designa os inimigos da igreja no mapa da basílica.

Notas :

1)

The Foundation Horoscope(s) for St. Peter's Basilica, Rome, 1506: Choosing a Time, Changing the Storia

Mary Quinlan-McGrath - Vol. 92, No. 4 (Dec., 2001), pp. 716-74

The university of Chicago Press

2)Astrology and the seventennth century mind -Ann Geneva/ Manchester University press -1995,p.13


Featured Review
Tag Cloud
Nenhum tag.
bottom of page